Estava eu na sala de triagem do nosocômio. Fazendo o que?
Bem, me disseram que eu precisava fazer uma consulta com o psiquiatra. Eu
estava ouvindo vozes. Pura intriga. Todo mundo ouve vozes. A não ser os surdos.
Esses não ouvem vozes. Se um surdo sabe que é surdo e diz que começou a ouvir
vozes, pode apostar que está doido. Esse sim deve fazer uma consulta com o
psiquiatra. Não eu.
Enquanto aguardava chamarem o meu nome, comecei a ouvir
uma voz. Uma voz de mulher. À minha esquerda, estava minha mulher. Não era ela.
Ela não é muda, e também não é surda, mas naquele momento, pelo menos naquele
raro momento, estava muda, como se estivesse se esforçando para ouvir alguém
falando baixinho, quase murmurando. Mulher que fala muito, quando fica muda, a
gente desconfia. Será que ela ficou muda porque também estava ouvindo a mesma
voz que eu comecei a ouvir? Perguntei a ela, meio com medo da resposta:- Você também ouviu? – E ela disse que sim, é essa mulher que está aí ao seu lado. Olhei para o banco à minha direita. Estava vago. De repente, um frio gelado correu pelo meu espinhaço. Minha mulher reforçou:
- É aquela lá.
Meu medo então me permitiu ver, dois bancos adiante, uma pessoa franzina falando com uma casaca que estava sobre uma cadeira, à direita dela, como se fosse outra pessoa. Comecei a prestar atenção no diálogo entre a mulher franzina e a casaca.
Pelas respostas estressadas da mulher, era como se a casaca retrucasse e contestasse os comentários que ela estava fazendo.
- Se você quer saber, doida é a sua mãe, sua filha da p...
- ... (silêncio)
- Eu sei, eu sei que o bebum do meu marido espalhou que eu ando conversando com a casaca dele.
- ... (silêncio)
- O que? Repita isso na minha cara!
- ... (silêncio)
- Ora essa, você veste a casaca dele, me persegue para todo lado, está querendo me internar e eu é que sou a doida?
- ... (silêncio)
- Ah, então é isso? Eu não sirvo para o seu filho porque fiquei lelé da cuca? Lelé da cuca é a p.q.p..
- ... (silêncio)
- Não adianta resmungar, vou te arrastar até o psiquiatra.
- ... (silêncio)
- Olhé lá, chamaram o meu nome. Agora você não escapa da internação, sua velha desmiolada. Eu mereço...
Para meu espanto, a mulher se levantou e foi embora pela porta da rua, arrastando a casaca pelo chão.
Chegou a minha vez e contei ao psiquiatra o que acabara de presenciar. Ele usou o interfone e mandou que minha mulher entrasse. Não sei para quê. A recepcionista veio pessoalmente ao consultório e disse ao médico:
- Esse paciente não veio acompanhado, doutor. E estava o tempo todo conversando com uma cadeira vazia.
O médico soltou uma interjeição dúbia, em voz alta, deixando dúvidas sobre sua acuidade auditiva, ou se espanto ou surpresa:
- Hein!?
(Fim)
(Crônica 1 – Publicada nos
dias 17 e 22/11/2012, em duas partes, na Gazeta do Litoral – Praia Grande.
Casimiro é autor
do romance BALA PERDIDA, disponível nas livrarias Aristogatas e Nobel, de Praia
Grande-SP, na livraria Porto das Letras, de Santos-SP, na Estante do Fernandes ou direto com o autor, pelo e-mail casimiroescritor@gmail.com.
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