quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Hein!?


Estava eu na sala de triagem do nosocômio. Fazendo o que? Bem, me disseram que eu precisava fazer uma consulta com o psiquiatra. Eu estava ouvindo vozes. Pura intriga. Todo mundo ouve vozes. A não ser os surdos. Esses não ouvem vozes. Se um surdo sabe que é surdo e diz que começou a ouvir vozes, pode apostar que está doido. Esse sim deve fazer uma consulta com o psiquiatra. Não eu.
       Enquanto aguardava chamarem o meu nome, comecei a ouvir uma voz. Uma voz de mulher. À minha esquerda, estava minha mulher. Não era ela. Ela não é muda, e também não é surda, mas naquele momento, pelo menos naquele raro momento, estava muda, como se estivesse se esforçando para ouvir alguém falando baixinho, quase murmurando. Mulher que fala muito, quando fica muda, a gente desconfia. Será que ela ficou muda porque também estava ouvindo a mesma voz que eu comecei a ouvir? Perguntei a ela, meio com medo da resposta:
       - Você também ouviu? – E ela disse que sim, é essa mulher que está aí ao seu lado. Olhei para o banco à minha direita. Estava vago. De repente, um frio gelado correu pelo meu espinhaço. Minha mulher reforçou:
       - É aquela lá.
       Meu medo então me permitiu ver, dois bancos adiante, uma pessoa franzina falando com uma casaca que estava sobre uma cadeira, à direita dela, como se fosse outra pessoa. Comecei a prestar atenção no diálogo entre a mulher franzina e a casaca.
       Pelas respostas estressadas da mulher, era como se a casaca retrucasse e contestasse os comentários que ela estava fazendo.
       - Se você quer saber, doida é a sua mãe, sua filha da p...
       - ... (silêncio)
       - Eu sei, eu sei que o bebum do meu marido espalhou que eu ando conversando com a casaca dele.
       - ... (silêncio)
       - O que? Repita isso na minha cara!
       - ... (silêncio)
       - Ora essa, você veste a casaca dele, me persegue para todo lado, está querendo me internar e eu é que sou a doida?
       - ... (silêncio)
       - Ah, então é isso? Eu não sirvo para o seu filho porque fiquei lelé da cuca? Lelé da cuca é a p.q.p..
       - ... (silêncio)
       - Não adianta resmungar, vou te arrastar até o psiquiatra.
       - ... (silêncio)
       - Olhé lá, chamaram o meu nome. Agora você não escapa da internação, sua velha desmiolada. Eu mereço...
       Para meu espanto, a mulher se levantou e foi embora pela porta da rua, arrastando a casaca pelo chão.
       Chegou a minha vez e contei ao psiquiatra o que acabara de presenciar. Ele usou o interfone e mandou que minha mulher entrasse. Não sei para quê. A recepcionista veio pessoalmente ao consultório e disse ao médico:
       - Esse paciente não veio acompanhado, doutor. E estava o tempo todo conversando com uma cadeira vazia.
       O médico soltou uma interjeição dúbia, em voz alta, deixando dúvidas sobre sua acuidade auditiva, ou se espanto ou surpresa:
       - Hein!?
(Fim)

(Crônica 1 – Publicada nos dias 17 e 22/11/2012, em duas partes, na Gazeta do Litoral – Praia Grande.
Casimiro é autor do romance BALA PERDIDA, disponível nas livrarias Aristogatas e Nobel, de Praia Grande-SP, na livraria Porto das Letras, de Santos-SP, na Estante do Fernandes ou direto com o autor, pelo e-mail casimiroescritor@gmail.com.

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terça-feira, 13 de novembro de 2012

CRÔNICAS PRAIANAS


O poeta e a segurança pública
(Versos livres)
 
Cabe ao poeta fazer graça
com a própria desgraça;
ver poesia
onde os vândalos se tornaram freguesia;
pleitear em vão seu direito ao amparo
com policiais de bom faro.
Enquanto recita Poliana,
mesmo sob chicana,
sempre engolindo o sapo,
sem requinte e sem guardanapo,
sublima o seu desamparo.
O poeta trabalha as ideias,
garimpando ouro sem bateias,
idealizando um mundo em que tudo são flores;
quando há conflito com a realidade,
sofrendo do mundo a maldade,
pensa até desistir
atormentado por tantas dores.
De que vale a mera palavra,
diante do bruto drogado,
insensível à dor, aos apelos e à morte,
se ele tem ao seu lado,
as ONGs, as leis, a justiça e a sorte?
Poeta,
ante o mundo violento,
sua poesia é um alento,
não seja tão pessimista.
Não se deixe vencer pelo mal,
aceite de forma bem lúbrica:
- um dia, lá longe, no futuro,
ainda teremos, quem sabe,
a tão sonhada segurança pública.
 
Missão cívica
Se escrever é uma missão cívica, o escritor é o missionário. Elaborar novas ideias, agitar as antigas e também permutá-las, possibilita arar, aerar, fertilizar, plantar, aguar, cuidar, colher, armazenar e escambar todos os seus frutos, para que se completem, rumo à verdade universal.
Já que ninguém produz tudo de que necessita, assim como ninguém detém a patente da verdade, é bom saber que esta é um bem cooperado e pertence a todos e com todos deve ser compartilhada: - não tem dono. 
Na literatura, a missão do escritor será sempre a de juntar e fundir ideias, mas também separar e esparramar, enfim, agitar, para que o intelecto humano se desenvolva cada vez mais, não se atrofie e não seja dominado por sofismas, jingles, mensagens subliminares, neurofones e por seu próprio ego; e o poeta ombreia com o escritor, suavizando essa missão.
Casimiro é autor de CRÔNICAS I, CRÔNICAS II E BALA PERDIDA, à venda nas livrarias Aristogatas e Nobel, de Praia Grande-SP, ou diretamente pelo e-mail casimiroescritor@gmail.com, ou na Estante do Fernandes: